Páginas

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Flavia Bonfim: ARTIGO: "O ardor e a dor de amor nas canções de Wi...


"Opção Lacaniana online nova série Ano 1 • Número 2 • Junho 2010 • ISSN 2177-2673 O ardor e a dor de amor nas canções de Winehouse. 1 Elian..."

O ardor e a dor de amor nas canções de Winehouse. 1

Eliane Lima Guerra Nunes

“Poetas e romancistas são nossos aliados e seu testemunho deve ser altamente estimado, pois eles conhecem muitas coisas entre céu e terra com que nossa sabedoria escolar não poderia ainda sonhar [...]”2.

A linguagem artística, em suas diversas expressões – música, poesia, cinema, pintura, etc. - transforma emoções em sentidos para seu público, criando, assim, um laço social entre este e o artista. Para Freud, o artista tenta, através de sua obra, dar sentido ao real sem sentido buscando transmitir àqueles que a apreciam uma sensação semelhante àquela sentida por ele no momento da criação. Vemos que o artista o faz intuitivamente, buscando muitas vezes esse efeito, como nos relata o poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade:
Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça
todas as mães se reconheçam
e que fale como dois olhos.
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os Homens
e adormecer as crianças.3

Algumas obras são leituras aguçadas da época em que vivemos. A abordagem da delinquência e a toxicomania, na década de 90, pelo viés da heroína, foram exploradas por Boyle em seu filme Trainspotting4. Uma obra pode refletir o mal-estar na cultura e seus modos de gozo, dentre eles um modo peculiar de gozo na atualidade – o cínico, presente na toxicomania. Segundo Lacan, algumas obras expressam com mais clareza a vertente real do sintoma do artista, por ele grafada sinthoma, como a de Joyce, escritor inglês e minimalista, que se utiliza de l’elanguas5. Em outros, o sinthoma se exibe encarnado no corpo do artista, como vemos na body art e mesmo no suicídio durante a performance, como acentua Silva6. Mas nem sempre a tentativa de tratar o real por meio
do simbólico consegue se traduzir num saber-fazer singular, como o de Fernando Pessoa7:
O poeta é um fingidor,
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.

Referindo-se à toxicomania, Freud diz que a intoxicação pelo uso de droga surge como uma maneira eficaz de lidar com o mal-estar, proveniente das vicissitudes da vida que causam sofrimento advindo de:
[...] nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução [...]; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens8.
A resposta dos sujeitos a esse imperativo é o que se chama de novas formas de mal-estar, que apresentam um caráter compulsivo, excessivo, próprio da busca de uma satisfação pulsional incontornável que muitas vezes pode arrastar o sujeito à própria destruição. Segundo Coelho dos Santos9, esses sintomas exibem a face do objeto pulsional da constituição subjetiva que, nos sintomas modernos ou freudianos, estariam recalcados. Sob a égide do capitalismo instaura-se um novo imperativo na cultura, pois não se trata mais de proibir. O novo mandamento superegoico é que o sujeito pode e deve gozar de tudo.
A toxicomania, como uma patologia social, é um sintoma do homem moderno que, imerso no discurso capitalista e de consumo, busca sua forma particular de obter satisfação com aquilo que tem – seu corpo, como evidencia Lacan: “ter um corpo é poder fazer alguma coisa com [...]”10. Poderíamos supor ainda que, em alguns casos, como postula Miller11, os sujeitos ditos “adictos”, artistas ou não, podem ficar atados ao seu parceiro-sintoma. O artista, como um personagem deslocado de si mesmo, pode se utilizar da linguagem para exibir seu modo singular de gozo.
Na atualidade, a compositora e cantora de jazz inglesa Amy Jade Winehouse, de 26 anos, apresenta um cancioneiro sui generis sobre o tema que nos interessa. Foi várias
vezes premiada em 2008: cantora revelação, além de mais quatro prêmios no Grammy Award12. Suas canções, seu estilo e sua voz marcam uma época na cultura global, além de exibir o discurso social sobre o abuso de drogas na atualidade. Foi-lhe negado o visto de entrada nos Estados Unidos da América para receber os prêmios acima referidos. Fez, porém, sua performance artística, ao vivo - via satélite de Londres, quando cantou a música Rehab13, de seu segundo álbum Black to Black. Essa canção sintetiza, como outras, sua visão da toxicomania e sua recusa de aceitar um tratamento convencional, de base cognitivista (terapia comportamental):
They tried to make me go to rehab
But I said 'no, no, no'
Yes, I've been black, but when I come back
You'll know-know-know
I ain't got the time
And if my daddy thinks I'm fine
He's tried to make me go to rehab
But I won't go-go-go…

Seu nome wine+house, por si só, marca seu estilo e nos faz supor uma alusão a uma vertente de seu sintoma – a toxicomania. Além de belíssimas composições e interpretações intimistas, a cantora pop põe em cena o próprio corpo, em suas diversas passagens ao ato toxicomaníacas. Seu corpo, cruelmente emagrecido e devastado pelo abuso de crack e cigarros, é exibido e capturado por imagens que, inexoravelmente, são
superfaturadas pela mídia14 que explora ao máximo seus reais Rehabs.Contudo, como compositora, Winehouse revela uma visão peculiar do feminino que encontramos na clínica contemporânea com mulheres, especialmente aquelas afetadas pela toxicomania.
A compositora traz para a cena musical temas como o lugar da mulher como objeto para o homem. Em suas canções alude à posição feminina, na qual a mulher se apresenta com aquilo que falta ao parceiro amoroso, respondendo assim aos imperativos de seu desejo, como salienta Lacan. Ressaltando ainda o que ele diz sobre o que um homem pode ser para a mulher: "não há limites às concessões que cada uma faz por um homem: do seu corpo, da sua alma, dos seus bens"15. O amor erotomaníaco da mulher e sua necessidade do homem amado, para situá-la em seu gozo ilimitado, a “depressão” advinda da dor pela perda dessa parceria amorosa com seu parceiro-devastação, o refúgio de seu mal-estar no álcool e outras drogas são temas cantados e também vividos em sua vida.
A canção What is about men alude ao seu “destino freudiano”, quando expõe o lugar da repetição em sua vida. Ela atribui sua escolha do “homem errado” à sua fixação no ódio de sua mãe, abandonada pelo marido quando ela era adolescente, e equipara esse ato a uma coisa naturalpara ela, assim como cantar:
Understand once he was a family man
so surely I would never, ever go through it
first hand
Emulate all the shit my mother hated
I can't help but demonstrate my Freudian fate
My alibi for taking your guy
history repeats itself, it fails to die
and animal aggression is my downfall
I don't care 'bout what you got I wanted all
It's bricked up in my head, it's shoved under
my bed and I question myself again: what is it
'bout men?
My destructive side has grown a mile wide…
and I question myself again: what is it 'bout
men?
I'm nurturing, I just wanna do my thing
and I'll take the wrong man as naturally as I
sing […].

Várias canções retratam a vivência da dor pela perda do parceiro amoroso como, por exemplo, “Back to Black”, uma réplica de sua relação cotidiana com o ex-marido, Blake Field:
He left no time to regret
Kept his dick wet
With his same old safe bet
Me and my head high
And my tears dry
Get on without my guy
You went back to what you knew
So far removed from all that we went through
And I tread a troubled track
My odds are stacked…
I'll go back to black
We only said good bye with words
I died a hundred times
You go back to her
And I go back to [...]

Nessa canção ela revela a devastação sentida quando o ser amado a deixa e os signos do amor ou do desejo se distanciam16. Podemos observar, tanto na música como no videoclipe, esse estado de “luto”, no qual ela se deixa voluntariamente ser aspirada pela pulsão de morte. Winehouse exibe a sua dor manifesta no próprio corpo e também, como autora, na reinvenção do ato compulsivo e repetitivo de sua relação com a droga que escolheu.
Ela delineia, em suas canções, aquilo que Lacan alude sobre como a droga promove o rompimento com o faz-pipi17 e, como uma latusa, ofertada como objeto de consumo e ilusão de completude, aspira o sujeito que, assim, acredita ter contornado a castração18. Addicted ilustra magistralmente esse casamento do sujeito com a droga, que exclui o outro:
I'm my own man so when will you learn
That you got a man but I got to burn
Don't make no difference if I end up alone
I'd rather have myself a smoke my homegrown
It's got me addicted, does more than any dick
did.
Vemos que esse gozo cínico, reflexo do discurso capitalista atual, deixa seus “doentes” encarnados como restos, segregados de si mesmos. Eles são tratados da mesma maneira pelas políticas de saúde e de saúde mental que, ao oferecerem tratamentos centrados na droga e em sua abstinência, os nomeiam de “drogaditos”, excluindo do sujeito aquilo que nele faz sintoma.
A capacidade da cantora de se reiventar, no meio de toda a sua realidade, torna-se evidente e permite construir, além de mais um capítulo de sua biografia, uma saída para esse gozo solitário. A arte pode construir um laço social, entre a obra do artista e seu público, mediado pelo Outro, como diz Lacan: “No desatino de nosso gozo só há o Outro para situá-lo [...]”19.
A arte e seu poder de transformar o sintoma, através de bem-dizê-lo20, permite ao sujeito nomear-se “artista”, transmutar-se e inventar para si um nome, como Joyce
(Lacan, 2007). Antecipa-se assim à análise, pois, além de transmitir um saber avant la lettre21, pode ser uma ponte para a construção do sujeito na sua análise individual ou
mesmo em uma prática entre vários (o analista, o terapeuta ocupacional e as diversas oficinas de arte), segundo Di Ciaccia22.
A arte pode ser um norte para a busca de uma identidade além daquela postulada pela ciência em busca de um ideal esterilizante de normalidade, pois como canta Caetano Veloso: “de perto ninguém é normal”23.
Cabe agora aos analistas traduzir para a sua arte – a de psicanalisar – o que os artistas nos revelam, como Gullar24 em seu poema “Traduzir-se”:
Uma parte de mim é multidão;
outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim é só vertigem;
outra parte, linguagem.
Traduzir uma parte na outra parte
que é uma questão de vida ou morte
Será arte?
1 Artigo apresentado no Encontro entre Cartéis da Escola Brasileira de
Psicanálise – Seção São Paulo, em 2010.
2 Freud, S. (1980[1906-1907]). “Delírios e Sonhos na Gradiva de
Jansen”. In Edição Standard Brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. IX,
pp.14-88.
3 Drummond de Andrade, C. (1969). Reunião. Rio de Janeiro: Editora José
Olympio.
4 Boyle, D. (1996). Trainspotting. [Filme]. Inglaterra. DVD, 16mm., 90
min. color. son.
5 Lacan, J. (2007[1975-1976]). O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 14. Lacan se utiliza dos escritos de
Joyce, especialmente da obra Ulisses, para descrever os efeitos da
linguagem ao discorrer sobre a lalação-lalíngua.
6 Silva, P. (2006). “O ataque ao corpo na body art”. Disponível em:
http://www.iar.unicamp.br/extensao/aperfartesvisuais/priscilla01.pdf.
7 Pessoa, F. (1980). O Eu Profundo e os Outros Eus. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira.
8 Freud, S. (1980[1929]). “O Mal-estar na civilização”. Op. cit., vol.
XXI, pp. 81-178.
9 Coelho dos Santos, T. (2001). Quem precisa de análise hoje? Rio de
Janeiro: Editora Bertrand.
10 Lacan, J. (2003[1974]). “Joyce, o Sintoma”. In Outros Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 562.
11 Miller, J.-A. (2000). “A teoria do parceiro”. In Os circuitos do
desejo na vida e na análise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
12 Grammy Award é um prêmio da indústria musical internacional
presenteado anualmente pela National Academy of Recording Arts and
Sciences, nos Estados Unidos da América, honrando conquistas na arte
de gravação musical e provendo suporte à comunidade da indústria
musical. Disponível em: http://www.grammy.com/videos/50th-annualgrammy-
awards-record-of-the-year. Winehouse foi premiada com a
gravação e canção do ano, artista revelação, melhor álbum Pop e melhor
interpretação vocal feminina pop.
Opção Lacaniana Online O ardor e a dor de amor
8
13 Site official de Winehouse. Disponível em: www.amywinehouse.co.uk.
14 Várias reportagens sobre a cantora foram realizadas pelo Daily Mail
Online, na secção TV&Showbiz. Disponível em:
http://www.dailymail.co.uk/tvshowbiz/article-1249013/Amy-Winehouse-
Maybe-Im-Amys-problem-Mitch-Winehouse-comes-clean.html.
15 Lacan, J. (2003[1974]). Op. cit.
16 Nunes, E. (2008). “Adolescência e corpo: a prostituição e o abuso de
droga como sintoma”. Tese de doutorado, Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo, São Paulo. Inédito.
17 Lacan, J. (1976). “Discours pendant la séance de clôture”. In
Journées des cartels del'École freudienne de Paris. Paris: Lettres de
l'Ecole freudienne (18), pp. 263-270.
18 Idem. (1992[1969-1970]). O seminário, livro 17: o avesso da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
19 Idem. (2003[1974]). Op. cit.
20 Idem. (1977[1976]). "Ouverture de la Section clinique". In Ornicar?
(9). Paris, p. 13. E em: Lacan, J. (1977[1976]). "Seminário, L'insu
que sait de l'une-bévue s'aile à mourre". In Ornicar? (12/13). Paris.
21 Idem. (2007[1975-1976]). Op. cit.
22 Di Ciaccia, A. (1998). "De la fondation par Un à la pratique à
plusieurs". In Préliminaire (9/10), pp. 17-22.
23 Veloso, C. Trecho da música Vaca Profana: “Dona das divinas tetas /
Quero teu leite todo em minha alma / Nada de leite mau para os caretas
/Mas eu também sei ser careta/ De perto, ninguém é normal[...]”.
24 Gullar, F. (1981). Literatura Comentada. São Paulo: Editora Abril.



Muito interessante a leitura que a psicanálise faz da letra e da personalidade da cantora. Um artigo muito bom e sensato.

Malu Calado

Nenhum comentário:

Postar um comentário